Tecnopolíticas e Democracia no Antropoceno

Grupo de Estudos e Pesquisas (GEP) vinculado ao Instituto de Estudos Avançados e Convergentes (IEAC) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

Áreas do conhecimento envolvidas: Ciências Humanas, Artes, Ciências Ambientais, Engenharias e Tecnológicas

Resumo:

Diante da tripla crise que enfrentamos – epistêmica (mutações no regime de verdade), política (erosão das instituições democráticas) e socioambiental (crise climática) – pretendemos investigar algumas trajetórias de criação e desenvolvimento sociotécnico relacionadas aos desafios de transição societal face à urgência climática do Antropoceno. Reconhecendo a forte agência dos arranjos sociotécnicos e a maneira como a inovação tecnocientífica tem influenciado e governado os modos de vida contemporâneos, este grupo de trabalho está interessado em investigar a hipótese da diversidade cosmotécnica como expressão de inovações democráticas situadas, capazes de imaginar e promover rotas de bifurcação tecnológica diante do colapso civilizatório e socioambiental em curso.

Objetivo:

Promover linhas de investigações interdisciplinares e inovação metodológica no campo das humanidades ambientais e tecnológicas que contribuam para o fortalecimento de uma cultura tecnopolítica democrática orientada pelas urgências socioambientais no Antropoceno.

Justificativa

Passados três anos da eclosão da Pandemia de Covid-19, nosso maior assombro diante da crise sanitária já não é a percepção dos agenciamentos que a produziram, mas sim a dura constatação da nossa incapacidade coletiva de fazer parar a locomotiva do progresso, como interrogava Bruno Latour acerca dessa possibilidade nas primeiras semanas da pandemia (2020). Ainda que aquele primeiro momento da pandemia, em diversos países, tenha sido marcado por uma desaceleração na atividade econômica e pela adoção de medidas de isolamento social, o “novo normal” foi rapidamente se infiltrando nos discursos e práticas cotidianas, intensificando tendências que já estavam em curso. A expansão dos arranjos cibermediados em diversos domínios da vida; a crescente financeirização e o extrativismo em suas diversas expressões; a adoção de medidas securitárias por governos, tudo para garantir que nosso modo de vida seguisse fluindo sob as novas condições intrapandêmicas (Parra, 2022).

O Tecnoceno é uma forma de caracterizar a dominância de um certo arranjo tecnocientífico e político no interior desse período geohistórico que vem sendo denominado de Antropoceno/Plantationoceno/Capitaloceno. A partir de meados do século XX, em especial com a emergência da virada cibernética e a expansão da fronteira energética, observamos a “Grande Aceleração” da confluência entre a monocultura tecnocientífica, o capitalismo financeirizado e informacional, a militarização e a atualização de regimes extrativistas.

Face a essa crescente tecnicização do mundo existem formas de vida que dependem de uma pluralidade técnica e relacional que resistem à ordem tecnopolítica dominante. São expressões de imaginários e práticas tecnológicas que apontam para outras cosmotécnicas, valores, racionalidades e normatividades contra-hegemônicas que dão forma a tramas sociotécnicas dissidentes.

No plano das políticas tecnológicas e econômicas, frequentemente os discursos e práticas de desenvolvimento industrial, fomento à inovação científica e tecnológica ou mesmo a promoção da soberania nacional no âmbito tecnológico, partilham de uma concepção sobre as tecnologias da informação e comunicação digital em que elas são compreendidas como artefatos neutros axiologicamente e cuja adoção, em suas configurações sociotécnicas dominantes, são justificadas como inexoráveis para o equacionamento eficiente de problemas empíricos. Modelos de inteligência artificial aplicada à saúde, educação ou à gestão pública; estratégias de plataformização digital; formas de automação no mundo do trabalho; tecnologias corporativas da semente ao prato na agricultura; tecnologias smart nas cidades e formas de transição energética para minimizar os impactos socioambientais; são concebidas sob uma certa cosmotécnica e adotadas como soluções unívocas em contextos heterogêneos, graças à escalabilidade dos processos de simplificação e redução socioecológica.

No Tecnoceno a monocultura tecnocientífica, a hegemonia cibernética e o capitalismo financeirizado, confluem sob uma razão orientada para a redução da vida a recursos exploráveis, atuando pela conversão do mundo às forças de tecnicização, abstração e extração. Mbembe, em seu livro mais recente, reflete sobre essa convergência: “a transformação da humanidade em matéria e energia é o projeto final do brutalismo” (MBEMBE, 2021, p.19). Yuk Hui pensa a modernização como um processo de sincronização global, no qual diferentes tempos históricos convergem para um mesmo eixo temporal. Neste processo, alguns conhecimentos serão priorizados em função da sua capacidade de fortalecer as dinâmicas econômicas e políticas. Na acepção de Hui, essa seleção é realizada e materializada através da disseminação e adoção de certas tecnologias, portadoras de formas de conhecer e racionalidades específicas (HUI, 2020).

Nesse sentido, iniciativas tecnopolíticas contra-hegemônicas estão em conflito com as epistemologias dominantes. Trata-se, portanto, de questões situadas na tríplice fronteira entre os modos de conhecimento, as formas da política e as formas técnicas de organização societal. Deparamo-nos, portanto, com os desafios relativos à atual crise de legitimidade e autoridade do sistema de expertise (científica e política) de nossas instituições. Diante desses conflitos, compreender o entrelaçamento dessas dimensões, seus limites e as encruzilhadas jurídico-políticas inauguradas pelos modos de composição sociotécnicos (em especial com as tecnologias informacionais digitais) é um desafio fundamental para o enfrentamento da atual Guerra de Mundos.

Se quisermos reagir às perspectivas de autoextinção global, precisaremos retornar a um discurso cuidadosamente elaborado sobre localidades e a posição que o humano ocupa no cosmos. Para que isso seja possível, precisamos antes de tudo rearticular a questão da tecnologia e ser capazes de conceber uma multiplicidade de cosmotécnicas – e não apenas duas (a pré-moderna e a moderna) (HUI, 2020, p. 89).

Ao acompanhar alguns conflitos tecnopolíticos podemos visualizar como a existência de outras formas de vida dependem de uma pluralidade técnica, onde a produção de conhecimentos e a criação tecnológica são compreendidas de forma situada e corporificada. O local importa, o corpo importa, a posição do humano num cosmos importa, bem como os efeitos de sua ação. Uma prática política ontológica não é só uma nova forma de descrever um velho problema; ela é sobretudo uma forma de redesenhar a conflitualidade a partir de um outro diagrama de forças que ativa outros possíveis e futuros, outros imaginários tecnológicos (PARRA, 2022).

Como transformar os enredamentos tecnopolíticos, a racionalidade econômica e seu padrão de eficiência inscritos na arquitetura dos arranjos sociotécnicos; como alterar a distribuição de poder que está materializada nas tecnologias que infraestruturam nossa vida contemporânea? Como imaginar outros horizontes tecnológicos e promover outros regimes de sensibilidade e outras formas de saber?

No contexto de crescente tecnicização da vida contemporânea, os grandes arranjos sociotécnicos e os artefatos tecnocientíficos adquirem forte agência sobre o governo de nossas existências. Nem o desenho dos projetos técnicos, sua implementação e os efeitos societais de suas adoções estão submetidos a processos democráticos efetivos. Partimos da hipótese de que as configurações tecnopolíticas dominantes atualizam formas extrativistas de conhecimento, valor e recursos, com regimes de poder, modos de conhecimento e regimes de subjetivação que dão forma ao que denominamos hegemonia neoliberal cibernética. Todavia, essas dinâmicas convivem com modos de apropriação e criação tecnológicas alternativas, capazes de promover ações de contra-poder e modos de ação política que resistem aos poderes dominantes de expropriação. Quais as tensões e sentidos que a noção de autonomia e soberania tecnológica adquire diante de fenômenos como o colonialismo digital e as formas atualizadas de extrativismo (cognitivo, bens naturais, energético, informacionais)?

Como problemática estruturante nos perguntamos tanto sobre a configuração dos regimes tecnopolíticos de saber-poder neoextrativistas como o que poderia ser uma perspectiva tecnopolítica decolonial que percorra as reflexões alternativas às imaginações do “progressismo” e do “solucionismo tecnológico” que apresentam-se como horizonte da governamentalidade do capitalismo pós-pandêmico.

Portanto, retomar a possibilidade de imaginar, conhecer e experimentar a emergência de outras composições sociotécnicas é fundamental para que possamos ampliar os repertórios sobre as distintas formas de coexistir, reconhecendo outros modos de produção de conhecimentos, racionalidades e normatividades técnicas que apontam para outros critérios de eficiência societal. A afirmação de uma diversidade cosmotécnica, nessa perspectiva, é inseparável da urgência cosmopolítica como invenção e radicalização democrática.

Referências:

HUI, Yuk. Cosmotécnica como Cosmopolítica. In. Tecnodiversidade, São Paulo: Ed.UBU,

2020.

LATOUR, Bruno. Onde aterrar? 1.ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.

MBEMBE, Achille. Brutalismo. São Paulo: N-1, 2021.

PARRA, Henrique Z.M. Da tecnopolítica às lutas cosmotécnicas: dissensos ontoepistêmicos face à hegemonia cibernética no Antropoceno. In. KLEBA,J. ; CRUZ,C.; ALVEAR, A. (org). Engenharias e outras práticas técnicas engajadas : diálogos interdisciplinares e decoloniais. Campina Grande: EDUEPB, 2022.